sábado, 31 de maio de 2014

Desegalização

Já era bastante tarde, mas ele se encontrava tentando resumir num texto de seu blog idiota tudo o que lhe comia. Era impossível, é claro. Vão. Vida vã... já eram três da manhã, e ele insistia. Uma madrugada, como pode ser forte. Aconteceu de combarem merdas... culpa de ninguém. Nem culpa nem mérito. Um dia um professor o tinha dito que alguém algum dia lhe disse que é só deixar as coisas as coisas caminharem nos trilhos para que o caos se instale. Não era culpa de ninguém... só a vida que aparentemente mostrou que a vida, a vida é traição.
Andava entre as paredes, aumentava o passo. Passava alguém? Estava sozinho? Tudo tão vão... minutos atrás.... Aumentava o passo. Ouvia algo... uma dessas coisas que potencializam melancolia. E as imagens, aquela sucessão desgraçada de imagens, todas claras, claríssimas. Elas e mais outras; daqui, do passado, do possível aniversário miserável do ano que vem. Tudo. E já se confundiam. O peito volta e meia suspirava profundamente. Suspirava e apertava. Suspirava e reduzia. E que respiração pesada essas imagens provocam. O peito acompanhava o passo, o passo seguia o compasso. Ou o contrário, realmente não dá pra saber.
Num momento o homem não aguentou, simplesmente desceu as escadas. Aquele maldito ziguezaguear que lhe fazia tão bem só tornava tudo mais ridículo àquele ponto. Saiu. Ganhou a rua. O olhar, o passo muito duros, talvez como nunca estiveram. Doía absurdamente, e doía sem mártir, sem lugar, sem culpa, sem nada... e talvez doesse mais por isso. Como assim, sem culpados? Como finalizaria esta ópera? Sem culpados? Não fazia sentido algum!!! Mas como era forte aquele passo, cada pé e um pedaço de si-esvaindo. Caminhava como quem está convicto de sua direção. O seu olhar, talvez surpreendentemente, acompanhava-o, era duro e certo. Seu rosto estava cheio de.... não sei... aquele rosto estava farto de alguma coisa.
Passos tão largos. Mas o que poderia ser tão largo a ponto de caber tudo aquilo? Só cabiam os solos intermináveis do progressivo. E isto o confortava por um tempo. Até o próximo suspiro. E então o homem encontrou seu destino. Não hesitou um segundo, o mesmo passo de casa até onde finalmente parou. Era outro homem; este não tinha pressa, estava sentado, absorto na vida. Sentava-se debaixo de um viaduto, tinham vários objetos dispostos a seu redor, umas coisinhas, uma mochila...
O homem em pé olhou o outro duramente, parado em sua frente. Cerrou os olhos por um tempo e lançou outro olhar, desta vez mais terno, para o homem sentado.
O objetivo de toda a verborréia estúpida que vomitei até agora foi ambientar a cena seguinte. A cena ocorreu imediatamente depois deste último olhar que descrevi. Todas as falas foram ditas pelo homem em pé. Embrutecendo o olhar e a expressão paulatinamente, o homeme em pé vomitou o que segue. Ele falava muito alto, alto e forte.
- Meu pai morreu! Ele simplesmente morreu! Tanta coisa pra dizer! Tanta coisa não dita...
- Como ele era duro! Como eu o amava! Se eu tivesse dito, talvez...
         - E ela? Cadê ela? Porque desgraça ela se afastou? Logo agora!
         - Por que não atendeu? Por que não retornou?
- E essas imagens? Desgraçadas imagens! Elas não param! Por que não param? Vê como é pesado respirar?!
- Não faz o menor sentido essas imagens agora! E agora banhada de mais sentido, mais elemento; se não tiver, eu invento!
- Consigo enxergá-las mais claramente do que vejo você aí sentado! Descreveria minuciosamente, cada som. CADA SOM. E cada som em mim. Cada cheiro em mim...
- Ele morreu e não tem volta...
- E é tão desgraçado ver essa grande imagem, cada movimento, o maravilhoso dia passado. É tão paradoxal, não tem sentido... Não tem sentido, mas eu sinto. O que me rasga, absolutamente, não é a ideia, a coisa em si... Ela é linda, por sinal. Mas a imagem, como pesa respirar.
- Eu a amo tanto, deixo isso bem claro, explicito! E ela ainda tem receios, dedos, e agora não me atende!
- Além do mais, minha mãe não se importa mesmo! Nunca se importou! O que ela quer agora? Agora que saio, que tomo, ela vem?
-Por que logo lá? Por que logo com essas pessoas? Talvez esta tenha sido a única configuração e momento na vida em que culminaria nessas malditas imagens....
- Justo quando venho conseguindo apagar, desmitificar as imagens de meu pai doente...
- E não é justo, nem é verdade... talvez seja isso que acentua essa merda toda. Talvez eu esteja sentindo as consequências de me perceber como hipócrita... Já não bastava o resto?
- Além do mais, fico bem boa parte do tempo, mas basta a vida, basta eu estar e me sentir só, basta a Roda de Íxion começar seu movimento.
- E essa mão trêmula que não pára, que não pára? Coluna doída, tiques, pernas bambeando? Expressões fracas, dermatite...
- Quem tem a culpa? A quem tenho que odiar?
(Nesta próxima fala, o homem em pé fala num tom mais grave e baixo)
- Minha mãe, que culpa tem? Bia, que culpa tem?
- Ninguém... Não há culpados! Há, apenas, a vida. Há o olhar acurado para as coisas tristes nesses momentos de melancolia... Mas, vá se fuder, a vida anda sendo tão boa....
- Preciso ir ao médico...
(Volta a gritar)
- Eu quero amar essa imagem. Quero desfazer essa imagem desgraçada em mim... Quero ressignificá-la. Quero andar amand(o-)a, simplesmente.
- A consciência de que essas imagens me surgem justamente para me levarem ao inferno, tornam tudo mais... torpe. E por que não consigo simplesmente parar com isso?
- Ah, eu só queria ter tido oportunidade de tomar uma num barzinho com meu pai!
O homem em pé terminou seu discurso aos prantos.
-AAARRRRRRRRRGGGGG!!
Este foi o urro que o homem sentado ouviu com um pouco de medo. Urro que vinha menos da boca do que do fundo do peito, do resto do corpo. Este urro se repetiu algumas vezes em meio a soluços, palavras e convulsões. Quando o homem em pé pareceu ter se tranqüilizado, o homem sentado se elevou à condição de homem em pé e os dois simplesmente se abraçaram longamente. Os corpos se tocaram quase que completamente, durante longo tempo. E então um homem olhou para o outro com olhar bem amoroso, de compaixão, indagou algo e obteve sua resposta do outro.

- Tu não me conheces? 

- Não conheço não,
           Conheço é que a vida 
           É sonho, é ilusão.
           Conheço que a vida,
           A vida é traição.


E novamente se abraçaram longamente.

terça-feira, 20 de maio de 2014

A flor da melancolia sempre tenta se botar

Não me lembro exatamente o momento, mas esse poemeto veio se construindo em mim:

- Poemeto de minha maior ambição

Como arabesco, já não posso reduzir...
Abraço bem apertado
Até onde der
Até quando der
E então deixo ir. 

Aliás lembro sim... Começou durante uma conversa.... E depois do poema tenho pensado em amor, em compartilhamento, intensidade, reciprocidade... Comecei a pensar nisso por uma única frase: tenho medo.... Medo por quê, não é lindo isso? Por quê medo? Mas faz sentido... Envolve pessoas, amor, intensidades, disparidades e outras coisas. Mas foi o suficiente pra eliciar aquele meu olhar nas ruas, aquele olhar pra dentro. Esse olhar está bastante diferente do olhar antigo, mas ainda assim, é bem duro de viver com ele.
         Inicialmente, isso é, depois da frase, só pensei nas merdas, que ninguém gosta de mim e tal, mas depois passei a analisar mesmo... É barril mesmo, o medo é entendível! Deveríamos ter conversado ali mesmo na hora... Preciso conversar com ela sobre isso, para saber mais sobre o medo. O foda é que minha insegurança anda me lenhando bastante e dá pra ver que é sem sentido, mas não consigo parar, é uma merda!
         Mas aí, talvez por isso esse poemeto tenha se realizado... Talvez eu esteja percebendo que não consigo fazer isso que o poema diz com abraços muito intensos; ou que, na eminência de um possível descompasso, desencontro, eu me percebo despreparado para deixar ir... Sei que esse arabescar está sendo algo delicioso que eu venho praticando, sentindo como é pra mim; posso sentir muita coisa... Pensei sobre isso também, mas isso é assunto para outro dia, quem sabe.
         E aí fica um poema muito bom sobre as coisas transitórias e transformadoras que acontecem em nossas vidinhas marotas.


- Uma alegria para sempre 

As coisas que não conseguem ser
olvidadas continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre onde as
datas não datam. Só no mundo do nunca
existem lápides... Que importa se –
depois de tudo – tenha "ela" partido,
casado, mudado, sumido, esquecido,
enganado, ou que quer que te haja
feito, em suma? Tiveste uma parte da
sua vida que foi só tua e, esta, ela
jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte da tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem queiras saber o quanto
deves à ingrata criatura...
A thing of beauty is a joy for ever
disse, há cento e muitos anos, um poeta
inglês que não conseguiu morrer.

- Quintana

terça-feira, 13 de maio de 2014

(explosão)

Boom, in your face!!! Como? É isso mesmo? Comigo? Insegurança maldita, que não me deixa viver as coisas! Olha naqueles olhos de novo... Olha aqueles olhos de novo! Foram eles que mandaram avisar! Sempre foi muito difícil pra mim lidar com elogios e essas coisas... E apesar d’eu ter melhorado... Caralho, vei... Caralho, vei!! Foram aqueles olhos mandando avisar que é amor! Devolvi o olhar com uma ternura muito nua, escancarada... Eu sabia que era/é absurdamente intenso, que há coisa muito forte entre nós, muito compartilhamento, muito carinho... muito amor. Mas, ouvir aquele recado des-surrealizado(?) pela fala, deixou meu olhar tão mole quanto ainda pode ficar! Ah, quão medíocres somos! Precisamos da fala para experienciar ~plenamente~ um sentimento que vem do outro. Aqueles olhos me diziam tantas coisas... Mesmo antes das palavras, sei bem disso. Talvez a des-surrealização da palavra falada faça até com que eles me digam mais agora... Mas por que precisei da palavra para sentir isso tão mais intensamente assim? Foi tão bom ouvir... Era isso! É isso, exatamente isso que existe aqui: amor! Talvez a fala ao invés de des-surrealizar, abra, na verdade, um novo processo de surrealização. Realidade para quem? E foi tão bom falar, também... Devolvi o olhar completamente nu e sorri, disse que o sentimento era mútuo e a abracei aquele corpo (e olhar), o mais próximo de um arabesco que meu corpo pôde fazer.

domingo, 11 de maio de 2014

Memória

Estava eu pensando sobre memória... é curioso demais a memória, estamos fazendo uso dela o tempo  todo. O curso que eu faço e mesmo a sociedade me impelem a pensar “memória” como capacidade, como lugar no cérebro onde se armazena as coisas simplesmente. É o primeiro pensamento que me ocorre: a memória como um lugar/espaço onde vai se jogando as coisas lá, aí todos nós temos uma capacidade, podemos excluir e incluir as coisas, sendo que nem sempre isso está sob nosso poder.

Pois sim, pensando sobre as coisas que eu lembro e que eu não lembro, concluo que este não é um processo tão simples, sei lá! Nem tão objetivo quanto meu primeiro pensamento sobre memória. Não me parece que seja uma simples área no cérebro, que armazena coisas e está suscetível a perder capacidade com o tempo... Talvez seja isso mesmo, mas, veja, o processo de lembrança e esquecimento me parece muito subjetivo... muito seletivo. Eu sei que tem coisas que são de fácil acesso, como a forma das letras e coisas de difícil acesso como o nome da bróder lá do contato. Sei que tem coisas que são, conscientemente, praticamente impossíveis de serem acessadas. Mas, falando das coisas possíveis, dos fatores principais dos anos que vivi, por exemplo. Aí que a coisa passa a ficar bastante subjetiva, seletiva.

Minha memória sempre foi uma bosta. Nunca, nunca, nunca, pelo que consigo me lembrar (rs), minha memória prestou. Isto é, em comparação com as pessoas ao meu redor, claro. Nunca fui bom em lembrar coisas nem a curto, nem a longo prazo. Eu nunca tive nenhum problema muito patológico, como esquecer como se faz alguma coisa, esquecer nome de pessoas próximas, mas nunca lembrei os estados e capitais nem da Região Nordeste. Talvez se eu tivesse visitado esses lugares eu saberia os nomes. Sempre soube que minha memória olfativa e auditiva poderiam ser perfeitas, mas essas habilidades não são exploradas em nossa cultura, então... E eu sempre fui meio hipocondríaco, ou seja, em algum ponto de minha vida eu achei que tinha Alzheimer, mas pelo menos eu achava que eu tinha Alzheimer (hihih fiz mesmo uma piada de Alzheimer).

Eu nunca fui bom em apresentar seminários por isso, é fato que eu nunca vou lembrar o que eu tenho que falar, por mais que eu domine o assunto. E essa certeza só piora as coisas, porque a única coisa que vejo quando vou apresentar um seminário nervoso é o vazio, o vazio e a obrigação de falar. Esse é ainda o tipo mais simples de esquecimento, o esquecimento de coisas específicas, que tem pressão para eu lembrar. O esquecimento é facilmente justificável.

Mas e as coisas que estão na minha Gestalt? As coisas que simplesmente estão claras para mim. Agora, por exemplo, o que está claro para mim agora é o coletivo, as pessoas queridas, muitas pessoas interessantes, sentir-me bem a maior parte do tempo, sair de casa, casa de Amanda, Amanda, vida está muito intensa, sonho, poesia, surrealidade. A vida para mim está sendo basicamente isso. Quando eu digo isso não é que eu só esteja vivendo isso ou só aberto a isso. Eu só tô dizendo que é isso que eu tenho claro agora. Pode mudar a qualquer momento, mas é isso aí. E mesmo desses elementos que citei eu lembro e esqueço de tanta coisa... Mas eles tão aqui, sabe?! Em evidência! É difícil explicar.

Por que eu não tenho claramente em minha memória o aniversário que eu passei chorando em 2012? Por que não está mais na cabeça as trezentas situações melancólicas antes da Ufba? Por que meu pai não está diretamente presente? Eu sei que esses elementos estão presentes na forma como eu vivo, “eu” só existo por causa disso tudo, sei bem... Mas por que muito dessas coisas não estão claras e outras sim? Claras... As ternurinhas que senti por Clara andam bem vivas em minha memória ultimamente... Já os maus que passei pela não correspondência andam tão longes, parece que aconteceu com outra pessoa...

Parece que o processo de lembrar e esquecer também está diretamente ligado com a minha história, sabe?! Eu não lembro simplesmente lembro das coisas. Eu esqueço desgraçadamente, lembro docemente. Eu esqueço docemente, lembro desgraçadamente... Outro dia estava bem triste por um motivo, daí me lembrei do solo de uma música do Dream Theater. Eu não sabia qual era o nome da música direito, até porque só lembrei de trechos do solo. Estava bem agoniado lá no meio da aula, tava horrível, eu só conseguia lembrar do solo e da imagem que me machucava tanto. Eu precisava ouvir aquele solo inteiro, precisava saber qual era a música... Saí de sala para ouvir a música. Achei! Era Enemy Inside (Link 1). Já tinha ouvido essa música algumas vezes, mas dessa vez parei para prestar atenção na letra... Puta que pariu!

I'm running from the enemy inside
(…)
These suffocating memories
Are etched upon my mind
And I can't escape from the enemy inside

         Isso mesmo. Exatamente essa letra! Por que eu me lembrei logo dela? E do solo, véi, não foi da letra! Terá sido coincidência? Pode ser, mas acho que não. Creio que era eu lembrando doce/desgraçadamente de algo. O bom de lembrar disso foi que passei a pensar justamente no tema desse texto, e era bom ouvir a música. Ainda lembrei de outra, que é, talvez, uma das músicas que mais ouvi, loopeei ela eternamente quando estive triste: Back of Your Head de Cat Power (Link 2).

burnt flavor
you hold the big picture so well…
can't you see we're that we're going to hell?

E não é isso? Lembro quando fiquei repetindo essa música, inicialmente eu adorei o som dela, bem triste e real... A voz da Chan, muito real e dolorida... Tem horas que a vida é bem assim. Daí passei a prestar atenção na letra, puta que pariu, era exatamente isso! Fixei exatamente no trecho acima, pesquisei o que significava “big picture” para me certificar... Era exatamente isso! É isso que eu sempre fiz... Acho que todos fazemos isso. Nós lembramos miseravelmente da imagem perfeita, toda a situação minuciosamente, da forma mais desgraçada possível, para nos entristecermos mais ainda. Lembrava-me  perfeitamente da imagem naquele dia, lembro agora e ainda dói bastante. Não podemos ver que estamos indo para o inferno?? Isso unicamente nos faz mal, véi! Não fazia sentido nenhum eu estar ali, no meio da aula, lembrando da situação; mas eu não conseguia evitar também, lembrava perfeitamente, cada detalhe, o cheiro, a desgraça do cheiro! Cada barulhinho... Eu estava me conduzindo pro inferno! Pergunto de novo: não é isso que fazemos? Por algum motivo, quando convém, selecionamos, mesmo que inconscientemente, uns pedaços de memórias né não?! Quando convier de novo me lembrarei da cena miserável, aposto! Me esqueci de muita, muita, muita, muita, absurdamente muita coisa legal que envolvia essa memória ruim que me fez ficar triste. Ignorei a maior parte, justamente para evidenciar aqueles sons, aquela cena. Olhe que desgraça! Muitas de minhas memórias são evocadas assim. Mas claro que isso serve tanto pra desgraça, quanto para o deleite. Então, deixa vir!

Lembrando de mais músicas, bandas e seu sentido em minha vida, me vem a cabeça Jimi Hendrix. Ele já foi o sentido de meus ouvidos existirem, quase. Hoje não ouço quase nada dele, ainda gosto pra caralho, mas o sentido de vida, a evidência, já não existem. É uma viagem... Regina Spektor me encorajou bastante para eu aguentar a vida. Mason Jennings, caralho! Muito do que sou hoje tem a ver com esse cara. Cat Power... As memórias de todos essas pessoas, principalmente os de antes de Cat Power, são muito remotas... Acho que resolvi falar de música porque é realmente importante para mim, para o jeito com que encaro a vida mesmo! Depois que passei a andar com fones e músicas baixadas, eu mudei muito. Nem consigo lembrar de como era a vida cotidiana antes disso, por sinal. O tempo que eu achava Mason uma das pessoas mais admiráveis do mundo parece tão tão remoto, tão, tão "não eu". E eu não estou criando oposição a este "não eu", eu adoro o Mason e meu processo de mudança também; mas estou destacando que a diferença. Diferença ao ponto de ser estranho notar que essa pessoa do passado era eu. Era eu em 2010/2011, não faz tanto tempo assim. Mas por que essas coisas tão importantes estão tão “encobertas” a ponto de ser estranho? Não sei direito... Às vezes fica realmente complicado saber... Talvez seja esse lance de esquecer e lembrar quando convém, mas talvez só minha memória lixo mesmo....

Minha memória é tão ruim que eu pensei nesse texto várias vezes, decidi que escreveria de fato ontem, quando vi Mr. Nobody; mas devo ter me esquecido de muita coisa que colocaria aqui... Mas estou satisfeito, esse é o meu jeito de viver mesmo, esquecendo muita coisa e lembrando várias outras, mesmo que só dos cheirinhos e barulhinhos...
  



Sixty-two plus twenty-two, equals eighty-four


Estava voltando pra casa, meio que na inércia de ficar triste. Voltava do hospital, tinha acabado de me despedir de meu pai que malmente me respondeu... Doía ainda mais exatamente por isso, por ele não estar me reconhecendo direito. Dói ver uma pessoa próxima perdendo a consciência. Dói estar sendo esquecido por quem se ama.
         Estava ouvindo uma música de Jethro Tull. Baixei um disco deles ontem, pelo nome mesmo, aleatoriamente; e que disco! Lindo em demasia, cada música. Enfim, eu ouvia a penúltima música desse disco, uma com uma introdução meio triste. Peguei o caminho mais longo para voltar pra casa, tanto para emagrecer um pouco, quanto porque o caminho é mais bonito, e também porque eu precisava pensar sobre meu pai e como estou lidando com sua doença.
         Em determinando ponto, o disco começou a se repetir, ou estava tocando a última música, não me lembro bem; a música tinha uns sons rápidos e bem dançantes. Comecei a andar mais rápido. Andava rápido porque a música era boa e eu não podia dançar no meio da rua como nos musicais.
         Apesar do meu ritmo, eu estava bastante meditabundo, meu olhar estava bastante distraído. Um velho de não mais de um metro e meio passou por mim, andando na mesma direção. Continuei distraí... Um velho? Passando por mim?? Nessa velocidade??? Passei a prestar atenção, era um velho muito baixinho com uma pasta na mão. Para me entreter por alguns segundos, decidi que passaria do velhinho. Passar dele não me deu trabalho algum, pratiquei corridinhas na esteira durante muito tempo; e, além do mais, eu nunca perco corridas com transeuntes.
         Depois de ter passado do velho, mergulhei no disco novamente: o cara da flauta estava sendo genial, o diferencial da banda. O vocalista me lembrou o Bowie, só que ainda melhor;  as letras, pelo que eu conseguia entender, eram muito boas também. Pensei em chegar em casa, pegar um disco do Bowie e compar... Não é que o velho me passou outra vez? E dessa vez estávamos andando absurdamente rápido. E ele era velho e estava com um passo estupidamente rápido. Era uma declaração de guerra!
         Tentei passar por ele ainda na calçada, mas estava realmente difícil, o velho era bom. Naniquinho, rapaz.... Apressado como o coelho de Alice. E tinha o passo forte, daqueles passos que dão um repuxo no corpo inteiro quando os pés alcançam o chão. Tive que ir para o meio da pista, à direita da calçada para tentar a ultrapassagem. Mas, acreditem companheiros, o velho veio me barrar a passagem!!! Contudo, habilmente voltei para a calçada e larguei meu oponente lá, no meio dos carros. Ele voltou. Estávamos lado a lado praticamente. Andamos um tempo. Fui para a direita de novo e dei o gás da juventude. Passei o velho. Mas passei por bem pouquinho, e eu ainda tinha que voltar para a calçada para vencer de verdade. Voltei para a calçada.  Parei na faixa de pedestres e ele me alcançou. Andei mais um pouco, ainda na frente dele, meu ponto de ônibus era a uns metros dali; fui pra lá. Eu havia vencido.
         Cheguei ao ponto, ainda com os fones no ouvido, e parei triunfante: me sentia bem pela música, pela vitória... Talvez eu tenha ficado com um olhar de superioridade em algum momento. O velhinho vinha andando em minha direção, finalmente diminuindo o passo. Ia passar direto por mim, mas hesitou por um momento, parou e disse algo. Estava com os fones, não ouvi. Achei que era alguma coisa me repreendendo por apostar corrida com um idoso, algo assim. Tirei os fones e pedi pra ele repetir o que havia dito.
         “Tenho que testar esses 84 anos!” foi o que o velhinho disse, sorrindo.
         Eu ri também. Ri e dei um tapinha amigável no ombro dele. E lá se foi o velhinho, novamente apressado, não porque não tinha tempo para a vida como o coelhinho de Alice, mas certamente porque tinha outra corrida para apostar com uma pessoa randômica.